No texto “Da criÌtica aÌ€s instituições a uma instituição da criÌtica†(2005), a artista norte-americana Andrea Fraser analisa como propostas artÃsticas questionadoras do sistema da arte, surgidas dentro de uma lógica de crÃtica institucional na década de 1960, se tornaram práticas festejadas e acolhidas sem atrito pelo meio da arte contemporânea. Em muitos casos, a obra de arte que critica a instituição onde se engendra ou é exposta pode levar a discussões tão grandes que tornam o evento criticado um dispositivo de consagração do artista, sua proposta e do local de exposição. Na atualidade tornou-se normal ver em museus, bienais e eventos similares, trabalhos artÃsticos que escancaram contradições polÃticas e problemas éticos de procedimentos comerciais, contratos, hierarquias, promoções e tantos elementos nada estéticos que integram a máquina de aclamação do autor e a consequente valorização dos agentes que lhe acompanham: o curador, o colecionador, o galerista, o centro cultural, o crÃtico, etc.
A exposição “Lonaâ€, do carioca Gustavo Speridião, na Galeria Anita Schwartz, na Gávea, funciona dentro dessa lógica de crÃtica institucional – embora não esteja em uma instituição. Inicialmente, a mostra pode insinuar um mal-estar quando se entra no portentoso espaço comercial e vemos enormes lonas de algodão com explÃcito conteúdo de crÃtica social e questionamentos da função social do artista, da arte e sua valorização como um objeto de consumo colecionável. Algumas lonas, em um total de 18, são colagens de panfletos e cartazes reais, de vários paÃses, com propagandas de esquerda, dizeres subversivos e estÃmulos inflamados à desobedência civil, relativos aos levantes anti-capitalismo assistidos nos dez últimos anos. Outras possuem escritos a carvão e nanquim que lembram graffitis em muros ou faixas de protesto, com dizeres como “Não temer o Mundo, mudá-lo!†ou “Se fosse bom não chamava Trabalhoâ€. Esta frase, aliás, é emblemática da própria contradição assumida por Speridião, um artista de aspirações revolucionárias que vende conscientemente sua força de trabalho e seu produto em um ambiente elitista e burguês, o qual provoca de dentro.
Há, ainda, lonas que abordam de modo mais direto uma discussão sobre a pintura. São quase-monocromos em vermelho, branco e preto, que evocam as cores predominantes das peças gráficas das manifestações, e de certo modo fazem referência à s vanguardas construtivas russas e a Bauhaus. Essas escolas estiveram ligadas a concepções revolucionárias da função da arte na sociedade e noções utópicas de práticas de trabalho coletivo no inÃcio do século XX.
Mais que ironia, o cinismo talvez seja o tom que amarra a individual de Gustavo Speridião, e isso fica claro quando, no segundo andar da burguesa galeria, nos deparamos com a imensa tela com o dizer “Maldita Burguesiaâ€. Do lado de fora, no terraço com vista para a Lagoa, um conteiner vermelho do estabelecimento exibe o único vÃdeo da exposição. Trata-se de um documentário das manifestações de 2013, com trilha sonora de punk-rock e hardcore, onde se assistem cenas cruas da emoção de manifestantes ainda não polarizados entre o azul e o vermelho, entremeadas por momentos absurdos de violência do estado em resposta à raiva explosiva de jovens irados contra tanta corrupção, mentiras do poder público e intrusões do capital privado no cotidiano.
“Lona†diz respeito ao suporte mais presente na mostra mas também pode ser um trocadilho com ir à lona, nocautear, jogar no chão. Speridião dá um soco no espaço burguês da arte, e também nas possibilidades de compreender o que é pintura contemporânea e qual a função do artista e sua força de trabalho neste mundo de tendências descartáveis. Contudo, não há ofensas. Há um contrato, um trato comercial e uma crÃtica institucionalizada assumida, mas nenhum pouco covarde.
*Texto publicado em O Globo, Segundo Caderno, 8/06/2015.